Bangu Atlético Clube: sua história e suas glórias

Retratos: espelho da vida

FILHO, Mario Rodrigues. O Negro no Futebol Brasileiro. Rio de Janeiro, 1947. Editora Mauad, 2003, 4ª edição, p. 32-34.
O time do Bangu em 14 de maio de 1905
O time do Bangu em 14 de maio de 1905, antes da partida contra o Fluminense no campo da Fábrica: da esquerda para a direita, última fila: José Villas Boas (Presidente), Frederich Jacques e João Ferrer (Presidente Honorário); fila do meio: César Bochialini, Francisco de Barros, John Stark, Dante Delocco e Justino Fortes; fila da frente: Segundo Maffeu, Thomas Hellowell, Francisco Carregal, William Procter e James Hartley.

O time do Bangu em 1905 tinha cinco ingleses, Frederick Jacques, John Stark, William Hellowell, William Procter e James Hartley; três italianos, César Bochialini, Dante Delocco e Segundo Maffeu; dois portugueses, Francisco de Barros, o 'Chico Porteiro', guarda da fábrica, um jogador que em quase todo jogo batia com a cabeça na trave, só via a bola e não via mais nada, e Justino Fortes, grandalhão, do tamanho de William Hellowell; e um brasileiro, Francisco Carregal. Brasileiro com cinqüenta por cento de sangue preto. O pai, branco, português, a mãe, preta, brasileira.

Francisco Carregal, talvez por ser brasileiro e mulato, o único brasileiro, o único mulato do time, caprichou na maneira de vestir. Era o mais bem vestido dos jogadores do Bangu. Um verdadeiro dândi em campo.

Há uma fotografia desse time do Bangu. Bem que a fotografia merecia ser guardada num álbum. Frederick Jacques, mestre gravador, o goalkeeper, está lá atrás, de pé, entre José Villas Boas, diretor de esportes, e João Ferrer, presidente de honra do Bangu. João Ferrer todo de branco, roupa branca, colarinho branco, confundindo-se com o peitilho branco e a gravata branca, parecia um enfermeiro. José Villas Boas de fraque cinza, fechadinho em cima.

Olha-se para a fotografia e só vê bigodes. Bigodes caídos, como o de Frederick Jacques, enrolados como o de José Villas Boas, torcidos como o de João Ferrer.

Somente três jogadores não usavam bigodes: o português Justino Fortes, o inglês William Hellowell, de cara muito branca, sem sinal de buço, lisa e macia feito rosto de menino, e o brasileiro Francisco Carregal.

O bigode de César Bochialini, bem italiano, um bigodinho atrevido, de pontas finas, para cima. O de Francisco de Barros, Chico Porteiro, nada tinha de atrevido. Pelo contrário: bigode austero, pesado como a responsabilidade de um pai de família cheio de filhos. Já o de John Stark lhe dava, ajudado pelo ar manso que ele tinha, uma cara de cachorro perdigueiro, boa e amiga. E havia, ainda, o bigode de Dante Delocco, bem aparado, como o de Segundo Maffeu. O de William Procter era preto, amorenava-lhe o rosto, o de James Hartley, louro, quase branco, fazia-o parecer mais velho. Também James Hartley já estava de cabelo ralo.

A camisa do Bangu não era, como agora, de malha, colante, com listras largas, vermelhas e brancas. Tinha as listras bem finas, quase juntas. E uma gola mais parecida com um colarinho mole. Pelo menos com um desses colarinhos de hoje, cujo desenho saiu das camisas esporte. O tecido um pouco sedoso e brilhante, como musselina.

Nem todas as camisas eram iguais. Umas tinham, bem no centro, de cima a baixo, barras do mesmo pano, de listras horizontais. Barras largas, da grossura de um punho, finas, da grossura de um dedo. Os ingleses não prestavam muita atenção a esses detalhes. Eram mais descuidados na maneira de vestir do que os italianos e os portugueses.

E muito mais descuidados do que o brasileiro Francisco Carregal. Talvez por orgulho de raça superior. Francisco Carregal aparece na fotografia em primeiro plano, de pernas cruzados, segurando a bola. Desenhada na bola, a giz, uma data da fotografia do match e as inicias do Bangu, sem o tê do The. Um bê, um a, um ce, em letras maiúsculas. E uns números, zero, cinco, traço, cinco, traço, quatorze. Primeiro o ano, 1905, depois o mês de maio, depois o dia, quatorze. As botinas travadas de Francisco Carregal, novinhas em folha. Se não novinhas, engraxadas de manhã para o jogo.

Chama atenção a diferença entre o apuro de Francisco Carregal, preocupado em não fazer feio, e o pouco se me dá de William Procter, que não ligava para essas coisas.

Francisco Carregal, um simples tecelão, comprou tudo de novo: as botinas travadas, as meias de lã, os calções. A camisa, quem dava era o clube. William Procter, o mestre eletricista, mandou travar umas botinas velhas, cortou com uma tesourada uma calça branca que não servia mais, nem comprou as meias de lã que custavam oito mil réis na Casa Clark. Enfiou o pé numa meia comum, que lhe ia somente até o meio da perna, e deixou-se fotografar de ligas pretas.

As ligas pretas chegam a ferir os olhos na perna branca de William Procter. Parece até que ele não acabara de se vestir, que viera correndo lá de dentro, para a pose fotográfica, sem calças, de cuecas. Principalmente porque está ao lado de Francisco Carregal, todo vestidinho, entre Francisco Carregal e James Hartley, que, além das meias de lã, botou, cobrindo as pernas, as caneleiras. Caneleira era coisa rara, não havia por aqui, só vindo da Inglaterra, como um verdadeiro requinte.

William Procter podia descuidar-se, Francisco Carregal, não. No meio de ingleses, de portugueses, de italianos, sentia-se mais mulato, queria parecer menos, quase branco. Passava perfeitamente. Pelo menos não escandalizava ninguém.

Se Manuel Maia, goalkeeper crioulo, filho de preto com preta, não foi apontado a dedo, o center-forward mulato Francisco Carregal nem chamou atenção. Que mal fazia um operário jogar futebol? Deixava de ser operário por isso?

No domingo dava seus pontapés na bola, corria em campo molhando a camisa, na segunda-feira cedinho, quando o portão da fábrica se abria, lá estava ele. Ia para os teares como os outros operários, trabalhava, só parava na hora do almoço, para voltar, depois, até às quatro horas. Nem tinha tempo de se lembrar do jogo da véspera.

E lembrar para quê? Na hora do trabalho, só do trabalho, na hora do jogo, só jogo. Afinal de contas, o Bangu era, apesar do The, um clube dos trabalhadores da Companhia Progresso Industrial do Brasil. Se não fosse a fábrica, como o clube arranjaria um campo? O campo só? E o resto? O resto era tudo.

O operário que jogava ao lado dos mestres, branco ou preto, não subia, não descia, ficava onde estava. Se quisesse subir tinha de trabalhar muito, de aprender muito, para passar de tecelão a mestre. Como Francisco Carregal acabaria passando à custa de trabalho, e não de futebol. O futebol era divertimento. Como todo divertimento custava dinheiro. Mais ou menos. Menos em Bangu do que na Rua Retiro de Guanabara, onde o Fluminense fizera o seu campo. Por isso não havia o perigo de que um Francisco Carregal, apesar de mulato limpo, ou um Manuel Maia, apesar de bom preto, respeitador, entrasse no Fluminense.