Bangu, uma elite operária do futebol?
Texto: CALDAS, Waldenyr.
Fonte: O Pontapé Inicial - Memória do Futebol Brasileiro. IBRASA, São Paulo, 1990, pp. 29-32.
Mas, diferentemente de todos os times daquele tempo, o Bangu (The Bangu Athletic Club) mantém-se até hoje, apesar de fugir à regra geral. Que os times ricos tenham varado o tempo, isto é normal e fácil de entender. O Bangu, no entanto, não é só uma exceção nesse aspecto. Ele representa ainda o momento inicial de todo o processo posterior de democratização no futebol brasileiro. Por isso, justifica-se um retrospecto histórico da sua existência.
Fundado por ingleses em 1904, sob o nome de The Bangu Athletic Club, este time, na verdade, pertence aos altos funcionários da Companhia Progresso Industrial do Brasil, uma próspera fábrica de tecidos localizada no subúrbio carioca, no bairro de Bangu. Vindos da Inglaterra, os técnicos dessa empresa logo pensaram em criar seu time de futebol; com o apoio da diretoria foi muito fácil. Além do gramado bem próximo à fábrica para servir de campo, a direção facilitou ainda a importação do material necessário para a criação do time, mandando buscar tudo em Londres. Até aí, tudo corria muito bem. Os técnicos ingleses da Cia. Progresso Industrial estavam felizes. Entre outras, por terem podido criar um time de futebol para seu lazer.
Mas, ao mesmo tempo, surgem os primeiros problemas. Não havia técnicos suficientes para formar dois times e isso, é claro, frustrava a expectativa dos ingleses. A saída possível e imediata para resolver o impasse era convidar seus compatriotas que trabalhavam nas empresas no centro da cidade do Rio de Janeiro. Isso não resolveu o problema. A distância do centro até o bairro de Bangu desencorajava a qualquer inglês ir praticar seu futebol após o expediente de trabalho.
Nesse caso, então, a solução teria que ser doméstica, e a única alternativa possível era contar com os operários interessados em jogar futebol. Isto, é claro, resolveu o problema imediatamente mas trouxe alguns privilégios aos jogadores-operários e outros desdobramentos de ordem administrativa na empresa.
O critério de escolha do jogador baseava-se principalmente em três aspectos: no seu desempenho profissional, no tempo de serviço na empresa e no comportamento pessoal. Ao ser escolhido, o jogador-operário passaria imediatamente a desempenhar um tipo de trabalho mais leve, onde pudesse economizar suas energias para concentrá-las no futebol. Nos dias de treino, ele tinha autorização dos diretores da empresa para deixar o trabalho mais cedo, com uma condição: dirigir-se ao campo de futebol, a fim de realizar os treinos coletivos.
Quase sempre o jogador-operário era mais rapidamente promovido. Os considerados craques, então, eram nitidamente protegidos pela diretoria. Além disso, o contato mais informal no campo de futebol com os altos funcionários ingleses teria função determinante nas vantagens auferidas pelos jogadores-operários. A partir desse instante, o operário (embora a coisa não fosse oficializada) não representava para a Cia. Progresso Industrial apenas um trabalhador a mais. Ele era, entre outras coisas, um veículo de divulgação da própria empresa, uma vez que o Bangu sistematicamente viajava para jogar noutras cidades. A presença de operários no time criava, junto ao público, uma imagem simpática da Cia. Progresso Industrial. Portanto, a partir de um determinado momento, o futebol do jogador-operário servia também de "merchandise" àquela empresa. Não era por acaso, nem pelo simples prazer de jogar futebol, que havia uma verdadeira luta surda entre esses operários. Todos eles ficavam sempre na expectativa de uma possível convocação por parte dos altos funcionários ingleses, para participarem dos treinos do The Bangu Athletic Club.
A convocação, é bom destacar, significava prestígio junto aos diretores, privilégios, possíveis promoções e, sobretudo, a garantia de permanecer empregado. Pelo menos enquanto satisfizesse as expectativas como jogador de futebol. E era isso, efetivamente, o que ocorria. Nesse termos, portanto, é que podemos, hoje, pensar que existiu no The Bangu Athletic Club, no início da sua história, uma espécie de "elite operária do futebol".
Daquela época, no entanto, de todos os times de futebol, o Bangu sempre foi realmente o menos elitizado: talvez menos por determinação (é difícil saber) e mais pela impossibilidade de sê-lo. O número de ingleses para formar o time era muito pequeno. Além disso, os ingleses que vinham para o Brasil não se interessavam pelo Bangu. A maioria deles integrava-se no Paysandu Cricket Club ou Rio Cricket Athletic and Association, que eram clubes mais próximos do centro do Rio e, portanto de melhor acesso. O Bangu, como se localizava no subúrbio, não tinha chances de concorrer com o Paysandu e o Rio Cricket.
Desses fatos emergem algumas questões quanto à democratização do futebol no Brasil ter sua origem no Bangu. Isso parece realmente incontestável. Resta sabermos, no entanto, quais os fatores que estimularam a presença da democracia num time de ingleses (de elite) como o Bangu. De início, já podemos pensar na localização geográfica que dificultava o acesso de outros ingleses até o campo do Bangu. Este, aliás, nos parece o motivo determinante para o sucesso da democratização do futebol no Bangu. A partir daí, é claro, surgia a necessidade de completar o time com os operários, a única opção que se oferecia aos ingleses se quisessem praticar seu futebol.
Portanto, como se vê, a democratização do futebol nessa época (como nos mostram Mário Filho e Anatol Rosenfeld) parece ter decorrido muito mais de uma contingência (o empecilho da distância) do que propriamente da intenção precípua da diretoria do The Bangu Athletic Club. Não fosse este clube localizado no subúrbio carioca e sim mais próximo do centro da cidade ou dos outros clubes ingleses, dificilmente teríamos operários, juntamente com ingleses, vestindo a camisa do mesmo time.
O estudo realizado por Anatol Rosenfeld apresenta mais um motivo para a democratização do futebol no Bangu. Estaria, nesse caso, envolvida a produção industrial da empresa. O lazer, via futebol para os operários, servia de estimulante para aumentar sua disposição física e, conseqüentemente, mais energia ele teria para o trabalho.
Embora admitindo ser apenas uma hipótese, o autor parece, no decorrer do seu ensaio, acreditar muito nessa intenção dos ingleses e é precisamente por isso que ele cita um exemplo claro e interessante:
"Viram-se obrigados a recorrer aos operários da fábrica, estimulados pela direção esclarecida, que provavelmente soubera que os fabricantes de tecidos ingleses na Rússia fomentavam o futebol entre os turnos para animar sua disposição ao trabalho e seu esprit de corps".
Se efetivamente a hipótese de Rosenfeld fosse verdade, a situação no Bangu seria outra. Não teria sentido, por exemplo, só um número reduzidíssimo de operários começar a praticar o futebol, uma vez que o objetivo maior era o aumento da produção. Ao contrário, neste caso, esse lazer deveria estar ao alcance de todos os trabalhadores. E, como sabemos, não foi isto o que ocorreu. Além disso, os ingleses teriam à sua escolha diversas outras modalidades esportivas, não precisando escolher justamente o futebol, um esporte caro e altamente elitizado naquela época.
Mais tarde, porém, quando este esporte se tornou um pouco mais conhecido, o Bangu realmente iria popularizá-lo ainda mais. As excursões do time por outras cidades ajudavam a divulgar o nome e criar boa imagem da Companhia Progresso Industrial e assim, de certo modo, começava a desaparecer o privilégio dos ingleses de só eles poderem vestir a camisa do The Bangu Athletic Club, que logo abandonaria o "The".
Em pouco tempo, o time de futebol já era mais conhecido do que a fábrica. A partir desse instante, a diretoria da empresa passa a se preocupar em criar uma imagem vencedora do Bangu. Não era à toa, claro. Quando menos, ela ajudaria a aumentar o prestígio e o sucesso comercial da empresa dona do time.
Para isso, no entanto, contar só com os ingleses já não era suficiente e nem interessante. Havia operários que jogavam melhor que os ingleses e por isso poderiam contribuir mais para as vitórias do Bangu.
É precisamente nesse momento, me parece, que realmente inicia a democratização do nosso futebol. Ao mesmo tempo, possuir um time vitorioso passou a ser vital para a Companhia Progresso Industrial. Até o critério de admissão na fábrica (operários, funcionários de escritório, etc.) sofreria algumas pequenas mudanças. Agora, a preferência era não apenas pelo bom profissional, mas também pelo trabalhador que jogasse bem futebol.
Sendo assim, o prestígio comercial que o Bangu representava para a fábrica obrigou, de certo modo, seus diretores a dar mais importância ao futebol. Mas esse foi um processo lento. Somente a partir de 1909, os operários passariam a treinar regularmente, a fim de integrar o time.
Aqui, verdadeiramente, temos o início da democratização do futebol no Brasil. O critério classista dos técnicos ingleses já não tinha mais forças para se manter. Operário "bom de bola, o az da pelota", como era chamado o bom jogador, tinha assegurado o seu lugar no time. Os próprios ingleses, agora, tinham interesse nisso. Atenua-se o conflito de classes (apenas na aparência) e com ele o preconceito de cor. O negro dribbler por exemplo, poderia e até deveria integrar o eleven do Bangu, desde que evidentemente, trabalhasse para a Companhia Progresso.