Contra o tédio, o eterno Divino
Texto: Roberto Sander.
Fonte: Coluna Toque de Efeito, publicada no Jornal dos Sports, em 14/04/2005.
Sinceramente, já não consigo nem mais ouvir falar de Fluminense e Volta Redonda. Ao constatar a pobreza do noticiário dos últimos dias, com declarações óbvias e maçantes (tá duro ficar ouvindo as pérolas de Dário Lourenço e Abel Braga e essa tediosa guerra de nervos de quem é favorito quem não é, quem tá contando vantagem quem não está), tomei uma decisão: só volto a pensar no jogo na hora em que a bola começar a rolar. Ou seja: às 16 horas deste domingo.
Por isso, vou me deter hoje a comentar sobre.... arte. Sim, vou falar de quem transformou o ofício do futebol numa manifestação essencialmente artística. Refiro-me a Domingos da Guia (foto), que poderá ser mais conhecido pelas novas gerações (assim espero) a partir da biografia que o jornalista inglês radicado no Brasil Aidan Hamilton estará lançando, neste sábado, às 10 horas, na Avenida Cônego de Vasconcellos, em Bangu, no calçadão que leva o nome do craque (o livro chama-se "Domingos da Guia, O Divino Mestre", 250 páginas e editado pela Gryphus).
Recomendo vivamente a leitura da obra, principalmente para essa rapaziada habituada a pseudo-ídolos que infestam nossos gramados (os conhecidos bad e bobosboys), porque em Domingos podemos encontrar as verdadeiras virtudes de um ídolo na sua plenitude. Apesar de ter sido um fora-de-série, reverenciado por escritores (Augusto Frederico Schmidt contava que Domingos era tão inteligente quanto o pensador alemão Göethe; o romancista Otávio de Faria afirmava que o futebol do Divino tinha a harmonia das composições de Mozart) e companheiros (o craque Tim, conhecido pelos dribles curtos e secos, dizia que era impossível passar por Da Guia, tal o seu senso de colocação), Domingos era um homem de alma extremamente simples. Capaz de, depois de ter sido campeão na Argentina, pelo Boca Juniores, recusar o prêmio de uma viagem de férias à Europa ofertado pelo presidente do clube. Preferiu estar em Bangu, com os familiares e amigos.
Sofisticado era tão-somente o seu futebol que o levou, por exemplo, a ser campeão por três anos seguidos em três países diferentes (por Nacional, do Uruguai, em 1933; Vasco, em 1934; e Boca, em 1935, na Argentina). Quando jogava pela Seleção Brasileira nesses países, muita gente ia aos estádios só para contemplar a sua performance.
A dimensão do seu futebol realmente atravessou fronteiras num tempo em que as comunicações ainda engatinhavam. O Rádio, é verdade, começava a viver o seu auge, mas Tevê nem existia. O escritor uruguaio Eduardo Galeano diz: "A Leste, a muralha da China; a Oeste, Domingos da Guia. Nunca houve zagueiro mais sólido na história do futebol mundial."
Além disso, a cor negra de sua pele ajudou a dar uma nova feição ao futebol naqueles tempos ainda românticos. Foram nos anos 30 que, ao lado de Leônidas e Fausto, A Maravilha Negra, o craque rompeu de vez com preconceitos que ainda viam o esporte bretão como uma atividade para brancos. Assim, o futebol brasileiro ganhou ginga, molejo, virou arte. Plasmava-se a nossa história de melhores do mundo.
Domingos da Guia morreu em 2000, aos 87 anos, deixando um legado que representa a alma do verdadeiro futebol brasileiro. Por tudo isso, o trabalho de Aidan é leitura mais que obrigatória. É impositiva.