Bangu Atlético Clube: sua história e suas glórias

Zizinho

Há quatro anos, na madrugada de 8 de fevereiro de 2002, morria, em Niterói, aos 80 anos, um dos maiores nomes do futebol brasileiro, ídolo do Flamengo, do Bangu e do São Paulo

Texto: Carlos Molinari, 26, é Editor da TV Nacional e Jornalista do Tribuna do Brasil, ambos em Brasília, 08/02/2006.
Zizinho

Dizer que Zizinho inventou o drible em ziguezague, aquele em que o atacante serpenteia por entre os beques inimigos, ora pela esquerda, ora pela direita, tocando a bola, gingando o corpo, sempre no rumo vertical do gol; dizer, pois, que Zizinho patenteou o drible em ziguezague seria atribuir, a um divino criador, a autoria de algo que sempre pertenceu ao domínio público. Seu mérito indiscutível foi o de ter conferido nobreza e eficiência a uma jogada tão vistosa quanto difícil, empolgante, mas na maioria das vezes improdutiva. Não por acaso, entrou para a história do futebol brasileiro como Mestre Ziza.

Enfeitiçado pela magia dos pés daquele mulato magro de apenas 1,70m, assim mesmo um tormento para os corpulentos beques europeus que aqui disputavam a Copa do Mundo, o jornalista inglês Willy Meisl enviou um emocionado despacho para o semanário World Sports. O Brasil acabava de vencer a Iugoslávia (2 x 0) no dia 1º de julho, no Maracanã, e um trecho do telegrama afirmava ao mundo: "Não se trata apenas de um craque, dos muitos que andam espalhados pelo mundo. Este é um gênio, um homem que possui todas as qualidades que podem ser idealizadas para um profissional chegar mais próximo da perfeição".

Era a pátria do futebol admitindo, quem sabe pela primeira vez, o talento de um nativo de outro continente. Ao lado, portanto, de portentosas legendas como Wright, Finney, Swift e Hardwick - ídolos de uma Inglaterra que pela primeira vez se apresentava numa Copa do Mundo -, emergia um Zizinho que sequer era nome próprio. Àqueles tempos gloriosos em que o sol jamais se punha em todo o império britânico, isso soava tão exótico quanto aceitar a idéia de instalar o volante do carro à esquerda.

Que um italiano assumisse tal encantamento era óbvio e cristalino. Após presenciar o massacre sobre a Espanha (6 x 1) no Maracanã, no dia 13 de julho, o enviado do milanês Gazetta dello Sport, Giordano Fattori, exortou:

"O maestro da esquadra maravilhosa. O futebol de Zizinho me faz recordar Da Vinci pintando alguma coisa rara".

Quando as imagens do passado se diluem num horizonte em que ficção e realidade são indivisíveis - por obra da humana condição de cultivar seus próprios mitos - torna-se também difícil o exercício da reconstituição histórica. Porque, especialmente no universo mágico do futebol, palavras são traiçoeiras. Nem Zizinho resiste a uma comparação com Da Vinci, nem seu gênio será merecidamente exaltado.

Numa manhã de outubro de 1939, ele apresentou-se a um auxiliar do técnico Flávio Costa, na Gávea. Por um notável acaso, o intocável Leônidas da Silva estava ausente. Flávio o examinou de alto a baixo, cruzou os braços sobre o peito, como majestosamente apreciava fazer, e ordenou: "O senhor de cabelo gomado. Sim, o senhor mesmo. Eu lhe dou dez minutos para roubar o lugar de Leônidas".

Um desafio. Acabara de completar 18 anos no dia 14 de setembro, decidido a fazer carreira de conferente no Lóide Brasileiro. Duas experiências anteriores o tinham frustrado a tal ponto que, morador em Niterói, jurara nunca mais botar os pés do outro lado da Baía de Guanabara. A primeira acontecera na rua Campos Sales, bairro da Tijuca, sede do time de seu coração. O amigo Clóvis - que viria a ser pai de um dos mais competentes armadores do país, o canhotinha Gérson - fez questão de levá-lo ao América e apresentá-lo ao treinador Costa Velho.

"Você é muito baixo e muito magrinho", diagnosticou o homem, com ar sapiente. "Além disso, meia-direita temos aos montes".

Semanas depois, no São Cristóvão, teve licença para mostrar conhecimentos. Mas, ao driblar o zagueiro Afonsinho, viu-se premiado com um pontapé no joelho que imobilizou sua perna direita durante quatro dias.

"Eu lhe dou dez minutos", repetiu Flávio Costa, que rapidamente afastou-se para atender os cobras do Flamengo. Camisa branca de treino na mão, desafio na cabeça, decidiu: "É hoje ou nunca".

Na primeira bola que conseguiu dominar, junto ao círculo central, hesitou. O ponta-esquerda Jarbas acenava, pedindo o passe. Apito na boca, Flávio Costa o observava com severidade. Um adversário chegou por trás e fez o desarme.

Zizinho perdeu o fôlego. Mas, inesperadamente, a bola voltou a cruzar seu caminho e, dessa vez, cinco minutos de treino, ele fechou os ouvidos ao mundo. Ergue os olhos, aprumou o tronco e iniciou o ziguezague. Levou um, levou dois, levou três. Avançando com a destreza de um esquiador na neve, driblou o quarto e o quinto, para, à aproximação do goleiro, enfiar um preciso cruzado no seu contrapé.

Antes dos dez minutos, apanhou outra bola. Empreendeu o mesmo roteiro e, se o experiente Flávio Costa nutria dúvidas a respeito de sua habilidade, ficou então perplexo. Zizinho, como um pêndulo, evitava os marcadores e, quando um deles conseguiu esbarrar o corpanzil na intenção de derrubá-lo, o atacante reagiu com um sólido golpe de ombro. Da meia lua, encobriu o goleiro e coroou o segundo ziguezague.

"O tempo era curto e tratei de fazer tudo, prender a bola, driblar, marcar gol", recorda Thomaz Soares da Silva.

O bem-sucedido teste de outubro de 1939 rendeu-lhe a inscrição na divisão de aspirantes, o que não significava nada além de uma esperança no futuro. Por isso, a véspera de Natal trouxe-lhe um fantástico presente.

No início daquela tarde, Zizinho dirigiu-se ao estádio de São Januário, o principal da cidade, para assistir a Flamengo x Independiente de Buenos Aires, aliás, time que formava a base da Seleção Argentina. O meia Valdemar de Brito fora cedido ao San Lorenzo e, ao passar pelo vestiário rubro-negro, Zizinho ficou para a preleção. O técnico Flávio Costa recomendou empenho e dedicação aos jogadores. Em seguida, chamando pelo nome e pelo número, passou a distribuir as camisas.

"... Sá, tome a 7. Leônidas, a 9. González, tome a 10. Jarbas, 11. 'Seu' Zizinho, o senhor será o 8, vai ocupar o lugar do Valdemar. Espero que mostre, lá no campo, tudo o que já mostrou nos treinos. Viva o Brasil!"

Viva. Bem que, por instantes, Zizinho tremeu, assustado. "Lá no Byron de Niterói, onde eu batia bola sempre, não tinha física", recorda. Das peladas de Niterói para a tratadíssima grama de São Januário! Na falta de pernas, correu com o coração; afobado e inexperiente, compensou com garra e juventude. Detalhes que não passaram despercebidos pelo sensível Flávio Costa que, apesar da derrota (3 x 4), o efetivou como titular. "A partir do Natal de 1939 passei a torcer apaixonadamente pelo Flamengo", assinala Zizinho.

"Era cérebro e pulmão de qualquer time", louva Domingos da Guia, seu companheiro naqueles primeiros anos.

"Quando os outros sucumbiam diante dos fortes e violentos beques, Zizinho ia mais à frente e, com fibra e coração, abria espaço, marcava os gols", testemunha o jornalista Geraldo Romualdo da Silva.

"Na véspera da final contra o Vasco em 1944, que nos deu o tricampeonato, ele nem dormiu. Passou a noite cuidando do Pirilo, que urrava de dor com uma orquite, do Vevé, com distensão na coxa, e de mim, com lumbago. No jogo, foi um leão", recorda Modesto Bria.

Calcula ter assinalado em torno de 300 gols. Todos tiveram a marca do heroísmo, do refinamento e da valentia, três virtudes que o fizeram único em sua época que se estendeu por duas décadas.

No Sul-Americano de 1953, em Lima, líder da Seleção, sofreu uma distensão na coxa. O técnico Aimoré Moreira o considerava imprescindível à campanha, e Zizinho aceitou jogar contra o Chile, com uma atadura protegendo o músculo combalido. Deu os passes que resultaram nos gols de Julinho e Baltazar, mas a dez minutos do fim, a partida acusava 2 x 2. Esgotado, mesmo assim aproveitou um contra-ataque para lançar-se num pique de 30 metros que garantiu duas coisas: a vitória por 3 x 2 e o agravamento da contusão.

Quatro dias depois, capengou 90 minutos contra um guerreiro Paraguai que venceu (2 x 1) e venceria também a revanche, válida pela decisão do torneio (3 x 2), desta vez sem a sua presença. No retorno ao Brasil, viu-se taxado de mercenário por ter reivindicado, como capitão, melhores gratificações. Assim, estigmatizado, sequer foi relacionado entre os convocáveis para a Copa de 1954, quando pretendia afinal apossar-se de um troféu que o destino cruel roubara quatro anos antes, no momento em que uma nação inteira já saboreava sua conquista.

No fatídico 16 de julho de 1950, Zizinho caminhou para os vestiários do Maracanã, após o desastre, nos ombros do goleiro uruguaio Máspoli, que sequer ousava comemorar. "Havíamos nos defrontado tantas vezes que nos tornamos amigos", relembra o craque.

Bem mais numerosos foram os grandes, épicos momentos. Num domingo de 1954, por exemplo, ele comandou uma das reações mais deslumbrantes que o Maracanã jamais presenciou. O Bangu - que defendia desde 1950, negociado pela soma recorde de 800.000 cruzeiros - perdia do Fluminense por 2 x 0. Logo no início do segundo tempo, executou um irresistível ziguezague: 2 x 1. Aos 22, repetiu o lance, arrastando área tricolor adentro um atônito Bigode agarrado à sua camisa. Pênalti que bateu com perfeição, 2 x 2. Aos 40, novo ziguezague, 3 x 2. Perdeu exatos 4,5 kg, terminou a partida com câimbras nas duas pernas, mas sentiu-se um artista feliz com sua obra, mais do que nunca.

De outra feita, provou sua solidariedade aos companheiros, para o bem ou para o mal. Num disputado Cariocas x Paulistas, em 1945, no Pacaembu, irritou-se ao ver seguidas agressões do lateral Begliomini sobre o ponta Pedro Amorim.

"Pedro, bate o lateral aqui no meu peito", determinou. A bola veio, rolou limpa no ar. Zizinho alçou uma bicicleta e explodiu o pé direito na cara do zagueiro paulista.

Em 1957, desencantado com o futebol e brigado com o técnico Gentil Cardoso, aceitou um último desafio: aos 35 anos, reger o time do São Paulo. Chegou numa segunda-feira, estreou 48 horas depois: goleada de 4 x 0 sobre o Palmeiras. Não cometia mais seus ziguezagues, claro, mas seus lançamentos, sua colocação em campo, eram inigualáveis. Cruzou com Pelé no início de carreira, não perdoou: "Demos de 6 x 2, com a fera e tudo", vangloria-se. Naquele encontro, sem perceber, passou simbolicamente o bastão de gênio. Pois que outro rei senão Pelé seria capaz de reinventar o diabólico ziguezague celebrizado pelo Mestre Ziza?

Zizinho
Os números de Zizinho
CLUBES J V E D GOLS PERÍODO
Flamengo 318 187 56 75 146 1939 a 1950
Bangu 266 148 52 66 120 1950 a 1957
São Paulo 66 40 14 12 27 1957 a 1958
Seleção Brasileira 54 37 4 13 28 1942 a 1957
TOTAL 704 412 126 166 321
Obs: Não estão computados os jogos de Zizinho quando atuou pela Seleção Carioca, nem pelo Audax Italiano do Chile, clube onde encerrou sua carreira.