UM REI À BANGU
Castor
de Andrade do futebol do samba do jogo do
bicho.
Foto:
Revista Placar 14/03/1980
|
|
Castor
entre o técnico Zizinho e o vice-presidente
Miguel Ângelo. Atrás, o time do
Bangu, de quem ele exige muita força,
luta e fibra.
|
Patrono
do Bangu, ele promete vencer o Campeonato Carioca
de 82. Homem ligado ao samba, garante que a sua Mocidade
Independente de Padre Miguel ganha o carnaval do ano
que vem. Poderoso bicheiro, é dono de uma infinidade
de pontos do jogo, no Rio de Janeiro. Uma figura amada
e temida ao mesmo tempo. Uma versão suburbana
dos coronéis do nordeste.
Foto:
Revista Placar
|
|
Status
de um superbicheiro.
|
Bicheiro
- "Eles me intitularam contraventor".
Mafioso "à brasileira". Dono
de indústrias. Comprador de juízes.
Rei das propinas. Subornador. Líder
dos bicheiros do eixo Rio-São Paulo.
Líder de sambistas. Recuperador de
marginais e inventor de outros. O próprio
marginal. Bandido intelectual. Dono de grande
arsenal de armas. Amigo de autoridades. Irmãozinho
de gente importante. Sócio numa metalúrgica
do genro do presidente da República.
Matador. Homem bom. Protetor de pobres. Homem
de palavra.
Acusado de tudo, em razão da fama que
criou através dos anos, esse personagem
controvertido, carismático, envolvente,
de extremos - ou está transando com
bicheiros ou nas altas rodas - é Castor
de Andrade e Silva, verdadeiro do Bangu Atlético
Clube, patrono da Mocidade Independente de
Padre Miguel, banqueiro dos banqueiros de
bicho, controlador de milhares de "pontos".
Nascido e criado nos subúrbios cariocas
- de Santíssimo a Bangu -, Castor herdou
duas coisas fundamentais da família:
do pai, o compromisso com a palavra e a formação
religiosa; da mãe, o amor pelas coisas
populares e os "pontos" de bicho.
Aos 54 anos, Castor tornou-se definitivamente
um personagem nacional: nos clubes de futebol
é visto pelos jogadores como "um
grande pai de mão aberta"; entre
sambistas, como um pacificador; entre bicheiros,
como um líder que inspira medo e respeito.
Na semana retrasada, enquanto era procurado
por dezenas de jornalistas do Rio e São
Paulo, Castor de Andrade mais uma vez cumpriu
a palavra, desta vez assumida durante o carnaval
carioca: dar uma entrevista exclusiva a Placar.
E naquela quarta-feira, às dez da manhã
em ponto, ele entrava inesperadamente na sede
do Bangu, subúrbio do Rio, provocando
verdadeiro corre-corre. Os dirigentes, ali
colocados por ele, chegavam a tropeçar
uns nos outros ao vê-lo entrar, disputando
seu cumprimento.
E Castor - vestido num elegante terno tom
sobre tom, com relógio e correntes
de ouro, sempre acompanhado por um eficiente
e discreto segurança - ria para todos,
dava dinheiro para alguns funcionários,
perguntava sobre os problemas do time e exigia
vitória (à noite, Bangu 1 x
0 Botafogo/SP) e prometia o título
carioca de 82.
"Em 81 farei da Mocidade novamente campeã
do carnaval, com um samba cheio de ô-ô-ô
e la-la-la". Depois comentava com os
repórteres: - Vocês vão
conhecer parte da vida de um homem ligado
às coisas mais populares desse amado
Brasil: futebol, samba e jogo do bicho. Vão
conhecer coisas da vida de um "contraventor"
que auxilia famílias, dá emprego
a mais de mil pessoas e, diferente da maioria
dos que me criticam, apoiou a greve dos metalúrgicos,
mesmo sendo patrão.
Foto:
Revista Placar
|
|
No Bangu,
exigindo empenho.
|
Os
muitos anos de militância no futebol
fizeram de Castor uma espécie de rei,
pela maneira ao mesmo tempo rude e diplomática
de enfrentar situações:
- Craque é como aqueles animais de
exposição: precisa de tratamento
especial. Cabralzinho não queria vir
de São Paulo para o Bangu: lhe dei
uma lancha de presente. Fomos campeões.
Um mão aberta, que dirige seus "negócios"
com extremo paternalismo. Mas o amor e a fúria
de Castor, que um dia teve o filho Paulo César
seqüestrado para que ele se apressasse
à polícia, acusado de contravenção,
nunca caminharam tão juntos como naquele
célebre Campeonato Carioca, 3 a 0 em
cima do Flamengo.
O penúltimo obstáculo era o
América. Nenhum temor. Bangu fácil
2 a 0, até que o juiz começa
a "complicar". Um gol em impedimento,
um pênalti "estranho" do Cabrita
e surge o empate. Castor se alucina. A cabeça
se contorce, os lábios mais ainda,
e do fosso para o gramado aquele revólver
de cabo reluzente, refletindo o sol no ouro.
A turma do deixa-disso conseguiu segurá-lo.
E o Bangu venceu por 3 a 2, com um pênalti
que até hoje a torcida americana não
perdoa.
Briga por futebol? É comum. E a briga
por samba? "Eu amo a Mocidade",
diz ele. E como! Era só vê-lo
descer daquele camarote excêntrico,
decorado de tropicália-maravilha, para
ir ao asfalto ajudar a Mocidade Independente
de Padre Miguel na arrumação
do desfile. A orgulhosa Portela lá
atrás esperando a vez, Castor na frente
coordenando a sua escola e os dois negões
portelenses cantando alto a vitória:
"Veja só, com uma bateria de bosta
igual a essa..." Uma ofensa dessas logo
pra cima da bateria nota 10 do mestre André?
O sangue de Castor ferveu. Primeiro o bofetão,
aí a arma reluzente do crioulo e a
arma do segurança de Castor na cabeça
do atrevido. Nisso, aparece o amigo Carlinhos
Maracanã, da Portela, e pede desculpas.
- Desaforo pra casa eu não levo, Carlinhos.
Você me conhece. E hoje a minha casa
é ali naquele camarote.
Um camarote que Castor dividiu com personalidades
como o juiz Álvaro Mayrink da Costa
("um amigo da família"),
Juca Chaves, Pelé, Francisco Cuoco,
Betty Faria, todos generosamente servidos
de champanha francês, uísque
escocês, filé mignon e outras
mordomias do gênero.
Foto:
Revista Placar
|
|
Bom
de conversa, nada de tiro.
|
Amado,
invejado, odiado, o folclore desse homem do samba
e do futebol, como dizem em Bangu, "já
dá tema para um enredo de escola de samba".
Afinal de contas, de tudo ele sabe um pouco. Um gosto
pela sofisticação e coisas do jet-set
que vem dos tempos dos estudos iniciais no São
Bento, colégio da elite carioca. Mais tarde,
Castor vai aprender parte da sua malandragem no Pedro
II da rua Marechal Floriano, ali perto da Central
do Brasil, morro da Saúde e adjacências
- lugares barra pesada do Rio. A cultura seria a etapa
seguinte. E ele foi se ilustrar não muito longe
do Pedro II, bem na praça da República,
na Faculdade Nacional de Direito, onde foi contemporâneo
do juiz e ex-presidente do Flu, Francisco Horta.
Cria autêntica dos subúrbios cariocas,
das peladas de Santíssimo, Realengo, Campo
Grande e Bangu, uma frustração ele tem:
como jogador, nunca passou de ponta-esquerda do time
do Guido, formado exclusivamente por garotos bonitos,
de pernas gordinhas:
- Em mim nunca passou a mão, malandro. Isso
eu garanto. Eu me mantinha no time só porque
tinha dinheiro, comprava uniforme, bola.
Atrevido e valente, esse garoto foi criado com mão
de ferro pelo pai, seu Zizinho: "Aos 17 anos,
levei uma surra de rachar só porque cheguei
em casa depois da hora marcada".
Sofisticado desde menino do colégio São
Bento e culto pelos ensinamentos que recebeu da Cândido
Mendes e da própria vida, como pôde Castor
entrar para o jogo do bicho se o pai era rico criador
de gado e proprietário de caminhões
de transporte?
- A vovó Iaiá era bicheira.
Justamente: a família da mãe controlava
boa parte do jogo do bicho no subúrbio. Tio
Nonô, tio Jorge e tio Justino se juntaram à
esperteza de Castor, que estendeu os domínios
da família, foi dominando ponto por ponto.
E hoje é bicheiro dos bicheiros.
- Atingi outro status: eu banco a parada dos outros.
Não é com violência que hoje resolve
os problemas da contravenção. Rico e
poderoso empresário, dá preferência
sempre a uma boa conversa:
- Bicheiro não dá mais tiro à
toa. A gente senta na mesa e eu lidero todo mundo.
Minha cultura ajuda. É claro que quando é
preciso...
Quer dizer que você dá tiro? Manda alguém
atirar?
Silêncio. Todos descem do carro que tinha saído
perto do meio-dia da sede do Bangu. Agora o grupo
está numa ruazinha tranqüila, simpática,
diante de uma casa de pedras estilo "gosto duvidoso".
É a fortaleza de Castor. Na verdade, uma das
fortalezas. Uma educada ordem sua e a porta se abre:
- São amigos meus, vão entrar.
Tudo bem decorado. No fundo, uma linda tapeçaria
com a torre de Belém, presente dado logo depois
do carnaval pelo amigo Carlinhos Maracanã,
presidente da Portela. Nessa ante-sala, um segurança
simpático - e alguns rifles e metralhadoras
espalhados por pontos estratégicos:
- Só precaução, amigos. O dinheiro
está por aqui.
Mas você não mata? Ou manda dar tiros?
Silêncio.
Foto:
Revista Placar
|
|
Na metalúrgica,
entre panelas.
|
A
Indústria e Metalúrgica Castor, que
acaba de assinar um contrato para fornecer panelas
e fogões de campanha para a Marinha e o Exército,
fica em Nova Iguaçu. O motorista desce pela
Av. Brasil e quer pegar um atalho.
- Esse caminho é perigoso. Vamos pelo caminho
normal - diz Castor, velho malandro.
Um Castor que é o verdadeiro capo do subúrbio
- sempre cercado de pedidos de emprego, pedidos de
casa. E sempre procurando ajudar. Um Castor que não
se perturba com a pergunta: "É verdade
que em Porto Seguro você faz tráfico
de tóxico e desova contrabando?" Ele não
ri, se limita a uma explicação técnica:
- Bicho é coisa querida, amada pelo povo. Tóxico
é odiado. Por isso a gente não deve
misturar, assim como não me meto com contrabando.
Quando quero uísque para presentear alguém,
eu compro.
Um Castor que na greve dos metalúrgicos reuniu
seus funcionários e disse: "Quem quiser
fazer greve, muito bem. Acho que é justo lutar
por um meio de vida melhor. Mas vou garantir o direito
de quem quer trabalhar. Na minha empresa não
quero piquetes".
No dia seguinte, 60% de faltosos, mas sem piquete.
Três dias depois, todos trabalhando - Castor
não descontou o dia de ninguém e gratificou
os que não aderiram ao movimento.
- O sindicato dos patrões queria que eu descontasse
o salário dos faltosos. Eu disse: aqui mando
eu e vocês vão pro inferno.
Um Castor que, diferentemente da maioria dos ricos,
faz questão de atender ele mesmo os telefonemas.
No Bangu é assim. E, quase sempre, uma resposta
em código:
- Aqui é do açougue, meu senhor.
No Bangu, quando ele disse isso, um dirigente logo
sacou:
- Palpite para vaca.
Um Castor vítima do AI-5, amigo do padre Paulo,
da Igreja do Sagrado Coração de Jesus,
construída com os braços e o sangue
do pai, seu Zizinho.
Na Ilha Grande, Castor foi parceiro de Carlos Imperial
no samba A Ilha. Ficou perto de Natal, da Portela.
- É um paraíso tropical e eu
fiquei numa casa de oito quartos, salões,
cozinheiras, tudo do melhor. Mas era uma prisão,
não era? Bem, não havia provas,
nunca fui enquadrado em qualquer artigo, voltei
ao Rio triunfalmente de helicóptero.
Ah, por falar em Ilha Grande, sabe que um
dos meus melhores funcionários, homem
forte do meu frigorífico de pesca lá
em Porto Seguro (Bahia), é o Mauro
Guerra, aquele marginal do morro da Mangueira
que apavorava a cidade na época do
Mineirinho? Foi pintar a minha casa na Ilha
Grande, ficamos amigos e hoje é um
homem de bem. Na vida, malandro, tudo é
uma questão de oportunidade.
Foto:
Revista Placar
|
|
Com
a amada bandeira do Bangu.
|
-
O João Saldanha, por exemplo - prossegue
Castor de Andrade. Ele pode se considerar
meu inimigo, mas eu o tenho como amigo. Questão
de oportunidade. Quer ver? Naquela decisão
Bangu e Botafogo, quando meu time tentava
o bicampeonato, em 67, o Saldanha me acusou
de bicheiro, contraventor, de ter comprado
o goleiro Manga, coisas assim. Isso num programa
esportivo da TV Globo. Nem discuti. Peguei
meus seguranças e invadimos os estúdios.
Eu, com duas "máquinas" na
mão. Foi um corre-corre danado - Castor
vai contando e rindo, se diverte muito. -
Pois bem: o homem é macho, me enfrentou.
Pouco depois, veio o AI-5 e acabei preso.
Foram em cima do Saldanha, queriam provas
contra mim. Ele disse: "Castor é
um homem importante no nosso futebol, nada
sei sobre sua vida particular e nada mais
falarei sobre ele". Isso é o que
eu chamo de dignidade. Foi amigo num momento
difícil.
Um Castor de Andrade que sabe reconhecer -
e admira - a lealdade dos amigos. Um vovô
coruja das netas Helena e Ana Paula, que cria
a filha Carmen Lúcia sob "liberdade
vigiada". Um homem que não manda
recados, fala cara a cara e que, na semana
retrasada, fez uma longa, tensa e emocionada
preleção aos jogadores do Bangu:
Foto:
Revista Placar
|
|
Com
o padre Paulo, na igreja.
|
-
Eu quero que este seja um time de macho. Que haja
respeito ao adversário, mas muita luta.
Agora,
Castor está sentado numa cadeira de
espaldar alto, solene. Todos o ouvem com a
maior atenção e respeito. Nisso,
se levanta e percebe que sua calça
sujou de cola da cadeira. Há um corre-corre
ainda maior - todo mundo querendo ajudá-lo
a limpar, alguns se prontificando a levar
a roupa à lavanderia. E ele, muito
malandro, não se faz de rogado: ali
mesmo, no centro do campo, tira as calças
e, de cuecas, começa limpar a sujeira
com a ponta de um canivete.
O senhor fino, de boa cultura, amigo de ministros
e outras autoridades, se reencontra nesse
momento com suas verdadeiras paixões:
ali, de camisa, paletó, gravata, sapato
de cromo alemão, meias importadas,
cueca e canivete, ele é o Castor, patrono
de Bangu - um homem do povo, bicheiro, amante
do futebol e sambista.
Repórteres:
Marcelo Rezende e Milton Costa Carvalho. Fotógrafo:
Rodolpho Machado.
Fonte: Revista Placar, 14/03/1980.
Revista
gentilmente cedida por Leonardo Cesar (leoicet@terra.com.br).