Bangu malandro
Alegre, descontraído, irreverente, um grupo de anti-heróis segue na luta pelo título carioca de 1985
Fonte: Revista Placar, 15/11/1985
Repórter: Armando Calvano
Revista gentilmente cedida por Leonardo Cesar (leoicet@terra.com.br)

"Emílio Santiago, apaga a luz!", gritou Cláudio Adão para Marinho, comparando o ponta ao cantor que fez sucesso no Festival dos Festivais com a música Elis, Elis e ganhou o prêmio de melhor intérprete. Marinho acabava de voltar do quarto com seu travesseiro e, preguiçosamente, já se preparava para deitar no chão da sala de estar da concentração do Bangu - a Toca do Castor, um antigo casarão situado a cerca de 1 km da sede social do clube.
Eram 4h15 da tarde de quarta-feira passada, poucas horas antes de o Bangu enfrentar (e vencer por 1 x 0) o time do Americano, de Campos, pelo segundo turno do Campeonato Carioca. Cláudio Adão preparara uma surpresa para seus companheiros: conseguira de seu sogro, o cineasta Luís Carlos Barreto, que fosse exibido o filme O Rei do Rio, a história da ascensão e queda de um banqueiro do jogo do bicho, papel vivido pelo ator Nuno Leal Maia.
O filme revela, por meio de Tucão (Nuno Leal), toda a malandragem que cerca o submundo do jogo do bicho. Uma malandragem que convive diariamente com o time do Bangu, seja por intermédio do patrono do clube, Castor de Andrade, o mais poderoso banqueiro do bicho carioca, do treinador Moisés, o "xerife" que já abandonou sua estrela há muito tempo, ou do ponta Marinho, que estende seu círculo de amizades aos moradores da Favela do Vintém, onde morou alguns meses, assim que veio para o Rio, há três anos.

"Isso aqui não é exército", sentencia Moisés, interrompendo seu jogo de buraco com Paulo Lumumba, ex-atacante que hoje treina os goleiros do Bangu. "Cada um sabe o que faz, cada um tem a sua responsabilidade", prossegue o treinador, ao mesmo tempo que era avisado por Lumumba de que cometera uma "distração" no jogo. Para bater, Moisés enfiou um 10 de copas no meio de uma seqüência de ouros - seria o mesmo que colocar em campo um ti-me com dez jogadores com a camisa do Bangu e um com a do América. E, para disfarçar, Moisés armou as cartas na mesa de tal forma que só aparecia, no meio da seqüência, a ponta do dez vermelho. O naipe, evidentemente, ficou escondido.
Mas esse jogo não era para valer. Servia apenas para passar o tempo, segundo Moisés. O que vale mesmo é o que invariavelmente acontece, nos dias que antecedem as partidas, até as 11 da noite. Para ninguém perder dinheiro, Castor de Andrade manda que os jogadores dividam quantias que variam de 500 000 a 1 milhão de cruzeiros. Distribuído o dinheiro, o carteado rola solto na concentração. "Como eles não jogam com o dinheiro deles, não têm nada a perder e não corremos o risco de criar área de atrito", explica o supervisor Neco.
A GRANA ROLA FÁCIL - E dinheiro é realmente o que não falta no Bangu. Nesta mesma quarta-feira, antes de ver O Rei do Rio, todos os jogadores passaram pela mesa de carteado, onde Moisés espalhou vários maços de notas de 50 000 cruzeiros. Era o prêmio pela vitória sobre o Fluminense - 1 milhão de cruzeiros para cada um. O ponta Marinho teve, então, uma grata surpresa: Castor de Andrade acordara de bom humor e não mandara fazer qualquer desconto no prêmio do jogador. "Maravilha, é o primeiro bicho inteiro que recebo", surpreendeu-se, sem notar que o treinador Moisés já lhe estendia a mão direita, cobrando os 150 000 cruzeiros que emprestara ao ponta na véspera.

Marinho é assim mesmo. Um craque dentro de campo, mas muito complicado fora das quatro linhas. No mês passado, por exemplo, recebeu só 700 000 cruzeiros dos 12 milhões a que tem direito mensalmente. E, por isso, tornou-se uma preocupação permanente de Castor de Andrade. "Vaca premiada tem de ser muito bem tratada", diz o dirigente, que tem o cuidado, na hora da renovação do contrato, de não dar dinheiro na mão de Marinho, a título de luvas. Prefere, sempre, optar por um imóvel, como a casa em Jacarepaguá, conseguida pelo craque no início do ano.
Isso, contudo, não impede que, às vezes, Marinho faça das suas. Há seis meses, apareceu no escritório de Castor com um carnê de uma concessionária de automóveis. Esquecera de pagar as prestações do Escort havia dois meses. Castor colocou tudo em dia. Três meses depois, o ponta voltou ao escritório: tinha nas mãos o carnê atrasado de um Monza vermelho. Castor resolveu acabar com isso de vez: pagou todas as prestações que faltavam.
Essa relação Bangu-malandragem pode ser sentida também dentro de campo. Para cada dia de treino, um nome curioso. Nas segundas-feiras, por exemplo, é o dia do funcionário público, como explica Moisés: "Ninguém quer nada com a bola".
Por isso o treinador apelidou o treino de "murrinha" ou "vadio", pois invariavelmente a maioria dos jogadores chega ao clube extenuada da farra feita na noite anterior. "É um direito que eles têm", acredita. "Eu, quando era jogador, não gostava nunca de treinar no dia seguinte às partidas."
Este, entretanto, não é o caso das terças-feiras. Neste dia, inevitavelmente - Castor de Andrade vai ao Estádio de Moça Bonita para ver o coletivo. É o treino do doutor e, aí, não tem moleza. Ele fica atento a tudo, observando cada detalhe.

TIROS PARA MOTIVAR - Os jogadores têm de se empenhar mesmo, como foi o caso de Perivaldo, que, há 20 dias, voltava de um longo período de inatividade, durante o qual esteve ameaçado de operar o joelho. Na ânsia de recuperar a posição, treinando entre os reservas, Perivaldo entrou três vezes com violência no ponta Ado. E os dois não se falam mais. Nem Castor, nem Moisés vão interferir no caso, "pelo menos até que isso de alguma forma prejudique o rendimento do time", que segue liderando o segundo turno do Campeonato Carioca.
Castor só interfere mesmo quando sente que há falta de empenho. Foi isso o que aconteceu, por exemplo, quando o lateral-esquerdo Marco Antônio ainda jogava no clube, há dois anos. Ao entrar no campo, Castor viu o jogador sentado junto à linha lateral. Preocupado, perguntou: "O que houve, Marco?" Meio sem jeito, Marco Antônio respondeu: "Estou com uma baita dor na perna, doutor". Castor não conversou: sacou da mala 007 seu 38 cromado e deu um tiro para o alto. Marco Antônio saiu correndo e foi se juntar a seus companheiros que faziam o aquecimento.
Às vésperas dos jogos, por superstição, Castor prefere não ir ao clube. Assim, Moisés fica mais à vontade para dirigir o treino "ave-maria", que começa às 6 da tarde, em ponto. Geralmente é uma pelada de dois toques, na qual Moisés, jogando de zagueiro, não perdoa os atacantes adversários. "E só para eles aprenderem", garante.
Na verdade, Moisés assume-se como treinador na hora, das preleções. Nem nos coletivos dá instruções. Prefere guardar tudo para concentração: "Eu deixo que eles errem nos coletivos. Pois, se isso não acontecer, vou ficar sem assunto na hora de fazer a preleção".
Mas nem aí o negócio é levado muito a sério. Marinho, sempre ele, é capaz de aparecer na sala de reuniões, onde fica a mesa de sinuca, vestido de mulher, como na quarta-feira passada, quando levou seus companheiros às gargalhadas. Surgiu de repente metido num vestido rosa, chapéu branco na cabeça e sapatos altos. Segundo disse, já era uma preparação para o Carnaval: "Vou sair no bloco do Moisés" - o Bloco das Piranhas, do bairro de Madureira, que desfila pelas ruas aos sábados de Carnaval.

A surpresa, porém, pode ser preparada por outros jogadores. E o caso do volante Israel que gosta de treinar com uma peruca castanha que tomou da cozinheira da Toca do Castor, há 15 dias. "Isso alegra o ambiente, solta a rapaziada. O Bangu não tem nada a ver com os outros clubes. Aqui, malandro é malandro mesmo", diz Moisés, divertindo-se com a dificuldade de Marinho para se equilibrar nos sapatos altos.
Marinho também é capaz de se travestir de múmia, como já fez várias vezes, antes de entrar em campo para treinar. Ele enche o corpo de ataduras e sai correndo atrás de todos os companheiros. "A gente tem de levar a vida assim mesmo", entende Marinho. "O importante é que, no campo, não estão mais conseguindo segurar a gente." Não lhe faltam outros argumentos: "Fomos vice-campeões brasileiros e agora estamos partindo para o título carioca. Por causa do nosso jeito de ser, você pode ver que o Bangu é o time que joga o futebol mais bonito do Rio. Um futebol alegre, solto, descontraído".
Moisés concorda. Acha que o bom futebol do Bangu está diretamente ligado à alegria de seus jogadores. "Meu chapa, aqui todo mundo quer morrer de velho. Esse negócio de viver em prisão já era há muito tempo. Meu time é da bola e do samba. Olha, se o Bangu tivesse uma torcida como a do Botafogo, seria campeão de tudo. Até de torneio de bocha."

Curioso é que esse time é formado em sua maioria por jogadores baixos, de físico raquítico, como são os casos de Baby, Mário, Arturzinho, Ado e Fernando Macaé, principalmente. "Rapaz, malandro não precisa ser forte para ser malandro. Nunca vi negão malandro com 2 m de altura", brinca Moisés. Logo em seguida, o técnico dá a escalação do time para o jogo contra o Americano:
"Cavalo, Cara de Manga Espada, Santinho, Nariz de Tomada e Cachorro; Cabeção, Queixada e Nanico; Emílio Santiago, Jacques Léclair e Pedreiro". Ou seja: Gilmar, Velto, Cardoso, Oliveira e Baby; Israel, Mário e Arturzinho; Marinho, Fernando Macaé e Ado, respectivamente.
MARINHO, O BRINCALHÃO - Os apelidos, em sua maioria, foram todos colocados por Marinho, a estrela maior do time - Bola de Ouro de PLACAR em 1985 -, um dos maiores jogadores do futebol brasileiro e, sem dúvida, o mais brincalhão de todos os jogadores. Sexta-feira retrasada, a manequim, Luíza Brunet foi coroada Rainha dos Jogadores do Bangu. No centro do campo, Oliveira comentou com Marinho: "Ela é um colírio". Marinho disparou, sem pestanejar: "E, a gente não precisa nem de conjuntivite para pegar". Para ele, com chuva ou com sol, todo dia é dia de diversão. Como, há duas semanas, quando sugeriu que um dos 14 carneiros responsáveis pelo bom estado da grama de Moça Bonita fosse morto para um churrasco. Hoje só restam 13. Ou quando subiu numa das mesas da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel para dançar break em meio a uma batucada infernal.
E é na Mocidade, da qual Castor de Andrade também é patrono, que os jogadores do Bangu mais se sentem à vontade. Lá, encontram a fina flor da malandragem carioca.