Bangu Atlético Clube: sua história e suas glórias

Gilmar, a muralha do Bangu

O time de Castor de Andrade mudou a imagem do ex-palmeirense temperamental. Hoje, ele é o goleiro mais regular do Rio de Janeiro

Fonte: Revista Placar, 06/12/1985
Goleiro Gilmar do Bangu

O radinho de pilha que animava as tardes de domingo na pequena casa da família do tapeceiro João Lucídio da Costa, em Marília, interior de São Paulo, estava sempre sintonizado em transmissões de jogos de futebol. João era são-paulino doente e sua mulher, Diana, corintiana roxa. Quando nasceu o quinto filho do casal, no festivo dia 7 de setembro de 1956, a mãe já havia decidido: o nome da criança seria uma homenagem ao goleiro Gilmar dos Santos Neves, que na época defendia o Corinthians. E o filho foi registrado como Leir Gilmar da Costa, cujo primeiro nome só seria usado mesmo em documentos oficiais.

Alto, músculos bem desenhados, elástico, corajoso, aos 29 anos e defendendo o Bangu, atual vice-campeão brasileiro e uma das sensações deste Campeonato Carioca, hoje Gilmar se destaca como o goleiro mais regular do Rio de Janeiro. De fevereiro do ano passado, quando foi contratado junto ao Palmeiras, até agora, ele já defendeu o Bangu em mais de 100 jogos e nunca deixou de usar a camisa titular, tendo sido substituído apenas uma vez, no jogo de returno contra o América, por ter se machucado. Apesar dessa presença constante em campo, até antes de enfrentar o Botafogo, no último domingo, ele ostentava a condição de goleiro menos vazado do atual certame, com oito gols tomados, um a menos que Paulo Vítor, do Fluminense, time campeão do primeiro turno.

Bem que o velho Gilmar, bicampeão mundial em 1958 e 62, há cinco anos já chamara a atenção para o jeito de jogar do jovem xará, então no Palmeiras, em que passou 11 anos. "Seu estilo é muito parecido com o meu", dizia o consagrado Gilmar. "E isso é espantoso, pois o garoto nunca me viu jogar." Mas o Gilmar que agora brilha no Bangu prefere esquecer tal comparação. Para ele, já bastam as que foram feitas enquanto tentava assegurar para si o espaço que o eterno Leão parecia ter-se reservado no gol palmeirense, mesmo sem estar defendendo o clube em 1978, quando Gilmar se profissionalizou. A personalidade de Leão era - e é - de fato tão forte que a torcida do Palmeiras parecia não se satisfazer com ninguém que viesse a substituí-lo. Gilmar teve de lutar muito contra esse fantasma. "Sempre quis criar minha própria imagem", garante.

Não foi à toa que em sua estréia no time profissional, na final do Campeonato Brasileiro de 1978 (vencido pelo Guarani, de Campinas), Gilmar esmerou-se em tudo, não apenas preparando-se psicologicamente para o momento mas também procurando vestir-se de maneira especial. Afinal, o rival ausente - por causa de uma expulsão no jogo anterior - fora o lançador de uma revolucionária moda de uniformes de goleiros. O estreante escolheu para a festa uma camisa cor de abóbora chocante e, embora tenha perdido a partida por 1 x 0, desempenhou bem sua função. Mais que isso, marcou presença com a cor berrante, mostrando personalidade.

Em 1979, o Palmeiras teria sua última campanha realmente merecedora de um título paulista. Mas alguns desacertos no fim do campeonato acabaram por roubar-lhe a grande chance, somando-se mais um ano em sua fila de espera por uma conquista. Com o time, o goleiro Gilmar passou por períodos de grande instabilidade, não raramente sendo acusado pelas derrotas. Esta situação colaborou para que algumas pequenas rebeldias de princípio de carreira assumissem proporções maiores do que realmente tinham, rendendo-lhe a fama de irritadiço e criador de casos.

Hoje, Gilmar está consciente de que as coisas que o aborreciam no Palmeiras, além das cobranças dentro de campo, eram as posturas disciplinares excessivamente rígidas por parte dos dirigentes. "Uma vez, eu estava chupando picolé no clube e o técnico me repreendeu dizendo que ali não era lugar para aquilo", recorda. "Outra vez, eu estava vendo televisão, quando o supervisor, sem me perguntar se eu estava com sono ou não, veio e desligou o aparelho. Ora, eu já não era um menino", reclama. Até que um dia - ao saber que Leão voltara ao clube - Gilmar se descontrolou e deu um murro na porta do vestiário, abrindo um rombo na madeira compensada. Colocado em disponibilidade, teve a sorte de o Bangu interessar-se por seu futebol.

A negociação com Castor de Andrade, patrono do Bangu, e o técnico Moisés foi rápida: não durou mais que meia hora. Pouco depois, no Estádio de Moça Bonita, Gilmar começaria a reencontrar a alegria de jogar futebol. De viver, também, embora no começo o Rio de Janeiro o assustasse muito. "Fui cair no foco da malandragem carioca", constatou. "Levei um susto quando cheguei ao Bangu." Os métodos, no Parque Proletário Guilherme da Silveira Filho, precário campo do novo clube, eram muito diferentes dos adotados no Parque Antártica. Para Gilmar, rapaz provinciano e elegante, que nunca havia saído de São Paulo, foi um grande choque. Logo que se apresentou ao Bangu, por exemplo, recebeu do técnico Moisés uma caixa de sapatos cheia de dinheiro vivo, num total de 7,5 milhões de cruzeiros, que eram metade do pagamento das luvas prometidas por Castor de Andrade. "Não sabia o que fazer com aquele dinheiro todo", conta Gilmar. "Já era noitinha e não havia mais bancos abertos. Além disso, haviam me dito que o Rio era cheio de assaltantes." Gilmar teve medo e, por precaução, dormiu aquela primeira noite com o dinheiro escondido debaixo do colchão.

Além da informalidade do novo ambiente, havia ainda mais com que se acostumar. Por exemplo, com os freqüentes 40 graus à sombra que se registram em Bangu, o mais quente subúrbio carioca, e que causam tonturas, falta de ar aos organismos desacostumados. Sorte é que ali não havia mais a obrigatoriedade de usar os tradicionais abrigos de treino, confortavelmente substituídos por calções e, nem sempre, camisetas. O pessoal do Bangu contribuía para que o novo goleiro se pusesse à vontade. A malandragem dos companheiros e do técnico, a amizade pessoal de Castor de Andrade, tudo ajudava.

Gilmar aprendeu rápido a viver no Bangu. Preferiu ficar morando na Toca do Castor, uma residência mantida pelo próprio clube, junto com o zagueiro Oliveira e o cabeça-de-área Israel. Perfeitamente integrado, já freqüenta os pagodes e as rodas de samba que os craques do Bangu adoram. Não pensa em se mudar dali, pois o clube providencia tudo - comida, roupa lavada - para que ele tenha toda a tranqüilidade e se preocupe exclusivamente com a profissão. "Não vim ao Rio para me divertir, vim para trabalhar", diz.

E tem trabalhado muito bem. Sua visão de jogo e sua segurança no comando da zaga são constantemente elogiadas. "O posicionamento de Gilmar é fantástico", afirma Moisés. "E nas saídas de gol ele está melhorando muito." O zagueiro Oliveira faz coro. "Com 10 minutos de jogo, Gilmar já sabe perfeitamente como o adversário busca o gol", revela. "Assim ele corrige rápido as falhas da zaga".

O próprio Gilmar admite que a experiência tem operado sensíveis mudanças em sua maneira de atuar. "Hoje em dia, olho o atacante, observo para que lado ele vai, pressinto com que perna ele vai chutar e já me posiciono", explica. "Também aprendi a técnica de encarar os atacantes olhando em seus olhos: aí, vence quem conseguir desequilibrar o outro emocionalmente." A experiência lhe mostrou, porém, que isso de olho no olho jamais funcionou com craques experientes, como Reinaldo, Zico ou Cláudio Adão. "Esses fazem que vão arrombar e dão um chutinho colocado", ensina. Com eles, Gilmar sempre teve que se desdobrar.

Assim, desdobrando-se, ele já foi chamado de Muralha do Bangu. Mas não se impressiona com o sucesso, que pode virar fracasso de uma hora para outra, bastando que a regularidade que hoje mantém desapareça por um motivo ou outro. "No futebol, os erros não se perdoam; mas estou consciente disso", diz. Gilmar também se considerada preparado para separar perfeitamente a vida profissional da vida pessoal, que faz questão de manter íntegra. "Primeiro sou homem; depois, jogador de futebol", define-se. Por isso é que evita comentários sobre a namorada, a bela chacrete Chininha, loura cheia de encantos, que não raro é vista em Moça Bonita à espera de que termine o treino do Bangu. Por valorizar-se pessoalmente, também, não abre mão de alguns luxos, como o de cortar os cabelos exclusivamente num cabeleireiro de São Paulo, do qual é cliente desde os tempos do Palmeiras.

Também não deixou de lado a elegância. As camisa que veste em campo ou são desenhadas por ele mesmo ou mandadas da Europa pelo amigo César (ex-palmeirense e ex-vascaíno), que joga hoje no Vitória de Guimarães, em Portugal. A elegância, afinal, hoje em dia parece ser um atributo inseparável dos grandes goleiros.