Márcio Nunes, o calvário do carrasco
Sob a terrível suspeita de ter inutilizado Zico para o futebol, o lateral do Bangu revela-se pela primeira vez um homem medroso, apegado às lembranças de sua falecida mãe e prisioneiro de um pesadelo
Fonte: Revista Placar, nº 857, 27/10/1986
Repórter: Alceste Pinheiro
Às vezes, a vida é um momento e o instante vira eternidade. Jogavam Flamengo e Bangu. Aquela noite de quinta-feira, 29 de agosto do ano passado, marcará para sempre dois homens que se encontraram no Maracanã. Foi ali que começou o drama de um dos mais brilhantes jogadores da história. Atingido no joelho, Zico veria seu prazer pelo futebol transformar-se em sacrifício - e o futuro, numa dolorosa interrogação. Já o lateral-esquerdo Márcio Nunes, que o atingiu, assistiria o episódio tornar-se quase um caso de polícia. Sentiria também o ódio gelado da torcida, como se mergulhasse no lado escuro da fama.
"Eu nem vi que era Zico, juro. Se visse, talvez fosse diferente", garante Márcio, um ano e dois meses depois. "Se ele diz isso, é porque não foi na bola", dispara Zico, convalescendo da segunda cirurgia no joelho esquerdo. Quarta-feira passada, 15, o lateral foi novamente expulso ao atingir por trás um jogador da Ponte Preta.
Márcio Nunes completa 23 anos no próximo dia 3 de novembro. É um fatalista. Atribui o lance daquela noite fatídica ao destino. "Quando Deus quer, não há como se evitar", conforma-se. Tem fama de carniceiro e já foi chamado até de assassino. É difícil imaginá-lo à beira do pânico em dias de tempestade e trovoada. Homem feito, ainda hoje corre para a cama e se cobre até as orelhas. "Sou mesmo medroso", confessa. Seu técnico, Paulo César Carpegiani, admite que ele é diferente de todos os jogadores que conheceu ao longo da carreira. "A relação é difícil porque, às vezes, você tem de ser duro, em outras, brando, mas não pode errar o momento", conta o treinador. "Márcio é extremamente sensível".
Sua infância tem semelhança com muitas histórias de crianças pobres, o que no Brasil se reveste de uma certa normalidade. Márcio é da Zona Norte do Rio de Janeiro. O pai, Alcides, era da Marinha Mercante e ficava longos períodos ausente de casa. A mãe, dona Argentina, morreu fulminada por um ataque cardíaco quando ele tinha dois anos de idade. O corpo foi velado na sala da modesta casa onde moravam. Os presentes constrangiam-se com uma cena proporcionada pelas crianças pequenas - entre as quais, Márcio. Cercando o caixão e as velas, eles insistiam em cantar o Parabéns a Você.
Márcio foi criado por uma irmã mais velha, Marília. Possui, no entanto, verdadeira veneração pela figura materna, que pouco conheceu. Passa horas adorando os retratos de dona Argentina e sempre lembra de ela ter previsto que ele seria jogador de futebol. "Quando acontece alguma coisa negativa, ele diz que é por não ter mãe", relata Marília, ao reconhecer que o irmão tem problemas de carência efetiva. "Quando disputo uma jogada, a primeira imagem que vem é a de minha mãe". É complicado pensar no autor desta frase e no joelho de Zico se estourando.
Impensável, também, é descobri-lo, há alguns anos, nas arquibancadas do Maracanã vestindo a camisa do Flamengo. Era um torcedor fanático e ficava sempre atrás do gol onde o rubro-negro estava atacando. Costumava gritar o nome de seu ídolo: o 10 flamenguista. Mas corria das brigas que quase sempre aconteciam. Em 1980, foi tentar a sorte no Bangu, no qual, dois anos depois, estreava no time de cima. "O clube era um ninho de cobras criadas e ele passava longe da birita", recorda o repórter Emygidio Felizardo Filho, que há uma década acompanha o dia-a-dia do Bangu para o Jornal dos Sports. "Com o tempo, percebi que ele era um pouco medroso, mas isso não atrapalhava seu futebol", lembra-se Neco, ex-jogador banguense, hoje assistente técnico.
Talvez sejam seqüelas de experiências duras vividas na infância. Ainda criança, durante um passeio com o pai e as irmãs à ilha de Paquetá, Márcio foi seqüestrado. Deu sorte, e encontraram-no horas depois. Mais azarada e traumática foi sua paixão por cachorros. Todos os que teve morreram. Chorou muito o fim do vira-latas Limão, quando tinha dez anos. Mas não desistiu do amor pelos bichos. Quando está em casa, diverte-se dando comida aos patos que o pai mantém no quintal.
Recentemente, um acidente de automóvel quase o matou. Atropelou um pedestre embriagado na Avenida Brasil, corredor de acesso à cidade, e perdeu a direção do veículo. A vítima acabou morrendo. Antes disso, sofreu com o roubo de um reluzente Voyage, o carro de seus sonhos de menino. Já se conforma, porém, com a dor de não cumprir o grande objetivo de sua vida. "Eu sempre quis jogar no Flamengo, mas agora sei que isso é impossível".
"É preciso lembrar que por trás do jogador reside o homem, normal ou anormal, sei lá", defende-o o goleiro Gilmar, companheiro de quarto nas concentrações. Na verdade, ele permanece prisioneiro de um pesadelo. Esta agonia o persegue desde 29 de agosto do ano passado. Naquela noite, enquanto Zico tomava o rumo dos vestiários flamenguistas com o joelho arrebentado, Márcio Nunes deixava o Maracanã com mais uma irremovível contusão na alma.