Sombras do passado
Carrinho que Márcio Nunes deu em Zico, em 85, volta a ser lembrado por Galinho em seu filme. Ex-lateral também não consegue esquecer. 'Fiquei marcado para sempre'
Fonte: Jornal O Dia, 04/08/2002
Repórter: Martha Esteves

Recortes de jornais amarelados pelo tempo, fotos já descoloridas, uma faixa de vice-campeão brasileiro do distante ano de 1985. Pequenas sobras de um passado quase sempre lembrado com certa tristeza. Um desbotado recorte de jornal, de maio de 87, mostra o reencontro do ex-lateral-direito Márcio Nunes com Zico, a quem havia ido pedir desculpas pelo carrinho que antecipou o fim da carreira do Galinho. O ex-lateral-direito chora. "Ele foi muito humano. Tinha tanto medo que me recebesse mal. Nunca me esquecerei desse dia", emociona-se.
O lançamento do filme sobre a vida de Zico na segunda-feira revirou novamente a vida do ex-lateral do Bangu. O Galinho lembrou a dramática luta travada para não se tornar um dependente de morfina, que tomava na medicação para suportar as terríveis dores, após a cirurgia feita em setembro de 1986, devido a uma trágica sucessão de contusões que começou com o fatídico carrinho de Márcio Nunes.
"Não guardei rancor dele porque sei que ele cumpria ordens", entende Zico, referindo-se ao técnico Moisés.
"Isso não aconteceu. Foi somente um trágico acidente", rebate Márcio Nunes.
Todo drama tem dois lados. Se o carrinho dado pelo zagueiro foi o início do fim de Zico, também abortou a carreira de Márcio Nunes. O zagueiro ficou marcado para sempre e decidiu parar em maio de 88, aos 25 anos, vítima de um carrinho dado pelo vascaíno Fernando. Após três cirurgias, foi aposentado pelo INSS, por invalidez. Sobrevive com pouco mais de um salário no bolso e muitos sonhos na cabeça.
"Nunca viram o meu lado. Fui chamado de assassino e criminoso. Até hoje, há pessoas que dizem que me odiavam por ter destruído a carreira do Zico. Mas eu também o amava como ídolo e sofri demais. Ainda sofro", desabafa.
Márcio gostaria de ensinar futebol às crianças - já teve uma escolinha, que não durou muito, e espera ver concretizado o plano de ir trabalhar no Japão. "Já estou batendo meu currículo. Um amigo vai tentar me encaixar em algum clube, como instrutor de futebol", conta.
Ex-integrante da torcida Fla-Mallet, Márcio hoje tem horror do Flamengo. Tanto, que fez o filho Mayson virar alvinegro. O ex-lateral não se conforma com o sofrimento do pai, seu Alcides, que morreu há cinco meses, levando muita mágoa no coração devido à repercussão negativa que tomou conta da carreira do filho, que um dia sonhou ver com a camisa rubro-negra. "Ele jogou fora tudo o que colecionava sobre o Flamengo, que passou a ser um assunto proibido lá em casa", revela.
Márcio Nunes se tornou evangélico e visita hospitais e presídios, "para dar conforto e levar a palavra de Deus". Acha que já pagou os seus pecados com juros e altíssima correção monetária e que muitos rubro-negros devem se sentir vingados com seu sofrimento. Mas gostaria muito de poder apagar para sempre do calendário de sua vida o dia em que feriu o Galinho. "Sou um cara honesto, que nunca fez mal a ninguém. Não entendo por que tive de passar por tudo isso. É coisa de Deus".
Uma carta selou o perdão

Corria o segundo tempo de um jogo noturno, que acabaria empatado sem gols. Zico dominou a bola no meio-campo, passou por Israel e Jair, mas acabou sendo atingido pelo carrinho de Márcio Nunes, diante de quase 24 mil indignados torcedores. Zico teve várias lesões: torção no joelho esquerdo e no joelho direito, pancada no perônio direito, entorse nos tornozelos e outras escoriações pelo corpo. Márcio Nunes acabou sendo expulso, após ter reagido a um pisão de Mozer.
Quase um ano depois, Márcio Nunes enviou uma carta ao ídolo. "Estou feliz por ver você se recuperando, para alegria da torcida rubro-negra e de milhões de brasileiros, que, como eu, são fãs de seu futebol. Espero vê-lo novamente em campo, fazendo os belos gols e as grandes jogadas que só um gênio como você é capaz de fazer".
No dia seguinte (29/8/87), o zagueiro o procurou pessoalmente. "Só de lembrar, eu choro. Quando ele disse que eu estava perdoado, desatei a chorar. Foi um momento muito lindo", recorda.
"No fundo, sei que ele não teve a intenção de fazer aquilo. Mas, infelizmente, fez. De qualquer jeito, já sofreu muito com tudo isso", lamenta Zico.
E como sofreu! O lateral não teve mesmo mais sorte, desde então. Um exemplo: até hoje briga por um apartamento que comprou, mas não levou, em Bangu. A obra parou e o dinheiro sumiu. O Fiat 147 usado foi vendido e, depois que se separou da mulher, foi obrigado a viver na modesta casinha em que o pai vivia, no Mallet. Só mesmo um emprego no eldorado japonês para dar um novo rumo a sua vida: "Seria um prêmio, após tanto sofrimento".