Os 70 anos de Moça Bonita, a relíquia do Bangu encravada no coração do futebol carioca
Fonte: Trivela, por Emmanuel do Valle, publicada em 19/11/2017.

Um dos palcos mais tradicionais do futebol carioca, o Estádio Proletário Guilherme da Silveira Filho, conhecido popularmente como “Moça Bonita”, completou 70 anos de inauguração no último dia 15. A nova praça de esportes do Bangu, construída numa área então pouco urbanizada do bairro, substituiu o velho campo da Rua Ferrer, situado entre a sede e a fábrica e que datava de 1906, representando um clube ainda sob forte influência britânica. Inaugurado pelo presidente que lhe emprestaria o nome, o novo estádio acabaria por se tornar um símbolo não só para a Zona Oeste como para todo o subúrbio do Rio ao longo das décadas que se seguiram, ainda que em certas épocas o Alvirrubro jogasse com mais frequência no Maracanã.
Clube fundado por funcionários britânicos e brasileiros da tecelagem situada no bairro de mesmo nome, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, o Bangu estreou seu primeiro campo em 1906, bem em frente à companhia, para disputar a primeira edição do Campeonato Carioca, realizado naquele mesmo ano. Logo atrás do campo ficava a sede social do clube. Entre os dois, passava a Rua Ferrer, que virou sinônimo do estádio. Durante décadas, foi um dos orgulhos do clube. Para chegar ao campo, os demais times cariocas empreendiam uma longa viagem de trem e ainda tinham que lidar com a hostilidade da fanática torcida local, em caso de resultado adverso ao Bangu. Mas a grama, inglesa, era impecável. E o estilo arquitetônico tradicional britânico, com arquibancadas de madeira e ferro, era tido como elegante.
No entanto, aquele modo de construção, tanto nas formas quanto nos materiais utilizados, caía em desuso no início dos anos 40. Em 1941, o Madureira inaugurara seu novo campo na Rua Conselheiro Galvão, tido na época como o mais moderno do subúrbio carioca. No mesmo ano, o niteroiense Canto do Rio, recém-admitido no campeonato, apresentara o Estádio Caio Martins. Por outro lado, os de estilo mais antigo revelavam-se inseguros: em 1936, um incêndio nas arquibancadas da Rua Ferrer impediu a realização de um jogo contra o Madureira. Em 1943, o desabamento de um lance de arquibancadas de madeira no campo do São Cristóvão, em Figueira de Melo, durante jogo contra o Flamengo, feriu mais de 200 torcedores. A federação carioca decidiu então proibir os jogos em campos com aquela estrutura.
Contra o histórico palco banguense também havia outro fator: o terreno onde ele se situava, bem no centro do bairro de Bangu, valorizara-se com a crescente urbanização ao redor. O clube devolveu o campo à fábrica, que vendeu o local para a construção de uma área comercial. A “cancha encantada da Rua Ferrer”, como dizia o eterno radialista Ary Barroso, despediu-se no fim da temporada de 1943 (na qual o Bangu ficaria em sexto lugar no Carioca entre dez participantes), infelizmente com um resultado nada honroso para o clube: derrota por 3 a 2 para o Canto do Rio, em 19 de setembro.
O jeito foi mudar-se para o outro lado da linha do trem. O terreno adquirido pelo presidente Guilherme da Silveira Filho (o popularmente conhecido Dr. Silveirinha) para a construção do novo estádio ficava ao norte da linha férrea, mais próximo do bairro vizinho de Padre Miguel, numa área ainda pouco urbanizada, que pertencera à antiga Fazenda da Viúva, no local conhecido pelo apelido que acabaria eternamente associado ao estádio: Moça Bonita. O início das obras estava previsto para 1944, mas acabaria adiado em cerca de um ano, o que retardaria também sua conclusão e inauguração.
Entre 1944 e 1947, enquanto a nova praça de esportes era erguida, o Bangu peregrinou pelos demais campos cariocas para disputar suas partidas como mandante. Jogou principalmente no do Madureira, em Conselheiro Galvão, no do Botafogo, em General Severiano, e no reformado estádio do São Cristóvão, em Figueira de Melo. Fez ainda um bom número de partidas em São Januário. E chegou até mesmo a se deslocar até a Gávea e as Laranjeiras para jogar “em casa”. Assim, fez campanhas fracas no Carioca, sempre próximo do pé da tabela, ainda que em nenhum ano tenha terminado na lanterna.
O projeto previa um estádio em formato de ferradura, com pista de atletismo e capacidade estimada em 60 mil espectadores, sendo 30 mil sentados e outros 30 mil em pé (acabaria tendo a metade disso quando pronto). Com o dinheiro da Fábrica Bangu, que através de seu Departamento Territorial arcou com toda a construção do Estádio Proletário (nome oficial que já vinha sendo anunciado pela imprensa durante seu desenvolvimento), o clube também fez obras de urbanização na área, construindo inclusive uma praça em frente ao novo campo.

No dia 15 de novembro de 1947, um sábado que coincidia com o feriado da Proclamação da República, o bairro de Bangu acordou com uma salva de 21 tiros disparados às cinco da manhã do velho campo da Rua Ferrer, em homenagem ao antigo presidente Guilherme da Silveira, e outra disparada do novo estádio, em honra a Guilherme da Silveira Filho, o mandatário de então. À tarde, por volta de 13h30, teve início na Rua Ferrer uma partida de 20 minutos entre duas equipes formadas por nomes históricos do time banguense, entre eles Francisco Carregal, primeiro jogador negro a vestir a camisa do clube, em 1904.
A cerimônia prosseguiu com um discurso de Guilherme Pastor, ex-jogador e dirigente do clube. As traves do velho campo foram então arrancadas pelos veteranos enquanto o senhor Targino Antônio da Guia – pai de Domingos e dos vários irmãos do “Divino” que vestiram a camisa alvirrubra – era encarregado de baixar a bandeira do clube do campo que se despedia. Dali seguiu um desfile, com a banda musical da fábrica à frente, rumo ao novo estádio. O cortejo teve a participação de ciclistas, atletas infantis e veteranos, sócios, dirigentes e demais moradores do bairro.
A chegarem à nova praça de esportes, o presidente hasteou a bandeira do clube ao som do hino nacional. Em seguida, sob a presença de diversos dirigentes do futebol carioca e da Confederação Brasileira de Futebol, seguiram-se novos discursos e homenagens – o ex-presidente Miguel Pedro anunciara que, pelo pedido da população, o novo estádio seria batizado com o nome do atual mandatário Guilherme da Silveira Filho. Por fim, os mesmos times de veteranos que atuaram na despedida da Rua Ferrer adentraram o gramado para um segundo tempo de 20 minutos, concluindo a inauguração simbólica do novo campo.
O primeiro jogo oficial disputado no estádio, porém, só viria em 28 de março do ano seguinte, um amistoso contra o Flamengo que serviria para mostrar ao público as várias contratações feitas pelo clube para aquela temporada, entre elas o retorno do lendário Domingos da Guia, já aos 37 anos, que pedira passe livre do Corinthians para encerrar a carreira no mesmo clube em que a iniciara. O jogo, que teve arbitragem de Mário Vianna, terminou com vitória alvirrubra por 4 a 2, com o centroavante mineiro Joel – outro dos novos reforços – marcando o primeiro gol da nova cancha. Moacir Bueno (duas vezes) e Menezes completaram a artilharia banguense, enquanto Zizinho e Gringo descontaram para os rubro-negros.
Com novo time e novo estádio, a campanha banguense ganhou um grande impulso naquele ano, ficando em quinto no Carioca (sua melhor posição desde 1935). Mas havia, no entanto, um outro estádio no horizonte não só alvirrubro, mas de todo o futebol carioca: o Maracanã, inaugurado em junho de 1950. Em princípio, durante aquela década e nos primeiros anos da seguinte, o Bangu conciliou jogos em ambas as praças: fazia clássicos no então Maior do Mundo e recebia os pequenos em Moça Bonita. Porém, pouco a pouco, a partir de 1963, a ambição de colocar o clube num novo patamar o levou a jogar quase sempre no grande palco da cidade, tanto no Carioca quanto em torneios interestaduais e nacionais. Em meados da dura década de 70, no entanto, o alvirrubro começou a ensaiar um retorno mais assíduo a sua velha casa.
O estádio foi fundamental no renascimento banguense, no segundo longo período em que o futebol foi comandado por Castor de Andrade, a partir de 1980, como base das grandes campanhas do clube no Estadual. Embora fizesse exibições históricas nos clássicos no Maracanã, era em seu alçapão da Zona Oeste que não deixava escapar pontos diante dos pequenos. No Campeonato Brasileiro, o Proletário também rendeu bons resultados. Nele, entre março de 1981 e outubro de 1986, o clube manteve uma série invicta de 31 jogos em competições nacionais, sendo 27 pela elite do Campeonato Brasileiro (20 vitórias e sete empates). Ao longo da década, gigantes como Vasco, Cruzeiro, Santos, São Paulo e Corinthians visitaram Moça Bonita pelo certame nacional e saíram derrotados.
Foi em parte desse período que atuou pelo clube o maior artilheiro do estádio: o centroavante Luisão, autor de 33 gols entre 1976 e 1984. O atacante Bruno Luiz, ídolo recente do clube, vem em segundo na lista, com 30 gols entre 2008 e 2015. Completam as cinco primeiras posições três nomes históricos do Bangu. Autor de dois gols na partida de inauguração, o ponta-de-lança Moacir Bueno anotou outros 27 até 1959. Ídolo da década de 80, o ponta-direita Marinho balançou as redes 25 vezes em suas várias passagens entre 1983 e 1997. E o ponta-esquerda Nívio marcou 24 vezes entre 1951 e 1957.
Ao longo das décadas, o Estádio Proletário recebeu ainda vários jogos dos quatro grandes cariocas, inclusive internacionais (em 1992, com o Maracanã em obras, o Flamengo mandou lá seu jogo contra o Estudiantes pela extinta Supercopa). Em março de 1970, a Seleção Brasileira dirigida pela última vez por João Saldanha empatou lá em 1 a 1 um jogo-treino diante do Bangu. Hoje Moça Bonita está cercado por um bairro totalmente urbanizado. Mas, embora tenha passado por algumas reformas para atender às novas normas de segurança, ainda preserva algumas características simbólicas. Assim como a famosa bandinha do clube, sempre presente aos jogos, o estádio permanece uma relíquia de outros tempos do futebol carioca e brasileiro.
Abaixo, matérias da imprensa na época sobre o novo estádio




